Tributo a Octavio Malta – (Última Hora, Rio, circa 1960)
Marco Antônio Pontes – [email protected]
Uma coisa, outra coisa
Meu amigo Geraldo Lúcio de Melo, aliás o jornalista Géraux, tem reparos ao que escrevi semana passada sobre o affaire William Waak:
– O homem público ‘tá sujeito a isso. “À mulher de César não basta ser honesta…”. Inda mais nestes tempos. Não comparo a frase dele à sua (nem é pela sua brilhante saída, como sói acontecer); “a coisa tá preta”, ok, é uma coisa, agora “coisa de preto” é outra coisa, como você mesmo reconhece nessa coluna, o tal racismo involuntário ou inconsciente.
Racismo brabo
Para Géraux, a quem agradeço elogiar-me a feliz sutileza da resposta (admito, humildemente), Waak merece castigo:
– Sou bisneto de escravo e acho que a punição é exemplar, infelizmente para ele. Não sei se ajuda a nossa causa, ainda mais com aquela juíza, ministra de Direitos Humanos estragando tudo; ela nos atrasou cem ou mais anos.
E concorda comigo quando diz que “racismo é brabo, ‘tá no sangue, tem de ser combatido dentro de nós mesmos. Este imbróglio pode até servir para chamar a atenção [para o problema].”
Radical-racional
Jornalista arguto, bem informado como poucos, com experiência também no setor público – assessorou o presidente Itamar –, Géraux é ativo militante da redenção de sua (nossa) gente e nisso exercita saudável radicalismo, sem afastar-se da racionalidade.
Dou testemunho: seus atos e atitudes têm nada a ver com modismos ‘politicamente corretos’; e penso que o combate ao racismo é das poucas causas em que radicalizar é preciso: não dá pra contemporizar com tamanha anomalia, persistente geradora de iniquidades pessoais e sociais.
Negritude assumida
Ele invoca a própria biografia:
– Até minha família foi omissa, não a próxima, pais e irmãos, mas a maior, primos quase pretos que assim não se reconheciam. Eu, modéstia à parte, [bem cedo] comecei a assumir a nossa negritude. Muitas vezes na porrada, quando jovem.
Conceitos, não pessoas
Pois é em nome de necessários radicalismo e racionalidade na militância antirracista que me permito discordar em parte das assertivas de Géraux, no caso em tela.
O combate sem trégua nem contemporização há de centrar fogo nos conceitos anômalos, imorais, antiéticos e absolutamente destituídos de fundamento científico que presidem os posicionamentos e ações racistas, não nos autores de ofensas provavelmente involuntárias.
Emoção e razão
Reconheço a validade, até inevitabilidade da indignação e reações acerbas dos mais diretamente atingidos, assim como da solidariedade ativa de vários grupos e pessoas, fruto de nobres sentimentos e intenções. Creio que indignação e solidariedade podem e devem exercer-se a partir da emoção, porém a ação efetiva para erradicar o mal – ainda mais o mal em estado puro, nascido dos piores instintos e impulsos (in)humanos – deve necessariamente basear-se na razão.
Escolhas vitais
Detectar precisamente as linhas de força do confronto – e estabelecer que de confronto de trata, dos mais acerbos –, no processo escolher aliados e, bem mais difícil, identificar os reais adversários é vital para os objetivos em mira, que integram o projeto mais amplo de uma sociedade justa, igualitária. Esta empreitada pressupõe eliminar exclusões sob quaisquer pretextos, entre eles os baseados na cor da pele.
Preconceito nosso
Parece-me bastante claro que os inimigos deste desiderato – exemplifico com tertúlias outras que frequentaram a imprensa – não serão Monteiro Lobato e sua admirável personagem ‘tia Nastácia’ (objeto do apodo da boneca Emília, ‘politicamente incorreta’ avant la lettre: “negra beiçuda”) nem Lamartine & João de Barro (“…mas como a cor não pega, mulata…”). Tampouco o vilão será William Waak, em que pese sua desastrada encarnação do preconceito nosso de cada dia.
Tática oportuna
Se bem me lembro das leituras juvenis, a frase está num dos Evangelhos e é atribuída a Jesus: “O escândalo é necessário, mas ai! de quem o provoque.”
Coube ao descuidado Waak provocá-lo e incendiar o debate (que aliás nunca deveria esfriar), porém não me parece correto nem oportuno imolá-lo neste altar pagão.
Creio até que se poderiam reeditar considerações que fizemos, os oponentes da ditadura, a cada vez que se apontavam mazelas ou deslizes de companheiros de jornada, mesmo eventuais: tem muita gente na frente de quem falar mal. É esta (deveria ser) uma bem vinda consideração tática sob a estratégia geral do bom combate ao racismo.
Por oportuno…
Recebo, orgulhosamente, os cumprimentos de Clemente Rosas “pelo oportuno e justo comentário [ainda sobre o caso William Waak], que endosso integralmente”.
Com igual satisfação, registro e agradeço que me recorde as lições de latim que mal apreendi no então curso ‘ginasial’ – lá se vão seis décadas…: nominativo é o caso do sujeito, genitivo o do possuidor, acusativo o do objeto direto… Compartilho o oportuno reparo com os leitores:
– Se me permite a observação, a expressão latina correta é “urbi et orbi” – “para a cidade e para o mundo”. O caso latino para os objetos indiretos é o dativo, não o ablativo, que corresponde às locuções adverbiais e nesta expressão determinaria a terminação em e.
Nuremberg
Escreve-me Mário Arcanjo, eventual colaborador e pelo visto ainda assíduo, vigilante leitor desta coluna:
– Olá, velho escriba. Não pense que estou desatento, continuo vigiando seus escritos para criticar o que acho estranho. Desta vez não entendi a citação do Tribunal de Nuremberg, não foi o que julgou os criminosos nazistas? Acho que apareceu como Pilatos no Credo…
Nuremberg (II)
Quis estabelecer uma analogia, Arcanjo, e parece que não me saí bem. Mas desta vez Pilatos tem a ver com o Credo, como afinal explico:
Davi Nasser, então famoso jornalista, melhor em textos, títulos que no conteúdo (e confiabilidade) das reportagens e artigos, publicou ao fim dos anos 1950 uma coletânea do que escrevera em O Cruzeiro e outros veículos dos Diários Associados, então líderes da imprensa brasileira. O livro, Falta alguém em Nuremberg, referia-se (como você disse) àquele tribunal instalado logo após a Segunda Guerra Mundial para julgar nazistas que perpetraram crimes contra a humanidade.
Nuremberg (III)
Quando a edição veio à luz era muito presente a lembrança do nazismo e sua, digamos, pálida imitação brasileira, o populismo autoritário ‘Estado Novo’ (1937–45). Nasser aproveitou o mote para cobrar punição aos autores de atos similares na recém-derrubada ditadura.
Tudo bem, não fosse o equívoco de atribuir só a um dos beleguins do regime, seu chefe de polícia Filinto Muller, toda a responsabilidade por um dos crimes mais brutais então perpetrados, pouco antes da formalização da ditadura: a deportação para o reich de Hitler – ato equivalente a condenação à morte – da mulher do líder comunista brasileiro Luís Carlos Prestes, a judia alemã Olga Benário; que ademais, sabia-se, estava grávida.
Nuremberg (IV)
Diga-se que Muller bem mereceu a execração. De fato comandou sob o ‘Estado Novo’ as torturas e demais atrocidades do período, foi político de ultradireita no interregno democrático sob a Constituição de 1946 e em seguida participou, figura de proa, da outra e mais duradoura ditadura, a de 1964–85.
Porém a história restaurada registra que na crueldade contra Olga e Prestes ele foi mero executor de decisões do ditador Vargas e seus esteios das mais altas patentes militares, à frente os generais Goes Monteiro e Eurico Dutra.
Voltarei ao assunto.
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