Marco Antônio Pontes | Cartagena é uma festa

Tributo a Octavio Malta  (Última Hora, Rio, circa 1960)
Marco Antônio Pontes – [email protected]


Surpresas, magia

Cartagena, Colômbia – Venho pela segunda vez a Cartagena, mas é como fosse a primeira. E não apenas porque a conheci, meio ao acaso, há cerca de cinquenta anos e portanto ela mudou demais nessas décadas de marcante urbanização em todo o mundo, especialmente na América Latina.

É que retorno disposto e talvez capaz a ver, de fato, coisas que só entrevi aos vinte e poucos anos, porque afinal o tempo ter-me-á ensinado alguma coisa: principalmente, no que se refere ao atual olhar sobre Cartagena, permitiram que lesse a obra de Gabriel Garcia Marques e me preparasse para o inusitado, a magia que viceja nesta porção naturalmente privilegiada do Caribe.

Surpresas na rua

Hoje Cartagena tem quase um milhão de habitantes e centraliza populosa área metropolitana, mas não foi a expansão populacional nem a pujança econômica, que salta aos olhos, que me impressionou.

Antes, encantaram-me aspectos que têm pouco a ver com demografia ou economia: é que a cidade – e isso ou bem a gente percebe logo ao chegar ou não notará em anos observação – guarda um caráter surpreendente em metrópoles latino-americanas.

Por exemplo, nas ruas praticamente não se veem pedintes; em vez deles, multidões de vendedores ambulantes expõem mercadorias as mais diversas, de óculos coloridos a pedras semipreciosas, artesanato, roupas e comida, muita comida.

Solução, não problema

Eles são insistentes, os vendedores e eventualmente teriam incomodado este turista acidental não houvesse há tempo constatado, na observação diuturna do que ocorre no Brasil e em andanças ocasionais em outras plagas que o trabalho ambulante, quase sempre e por definição informal, é menos problema que solução.

Problema pode ser para pequenos comerciantes que sofrem concorrência considerada desleal, já que ambulantes não pagam aluguéis, impostos, obrigações trabalhistas.

Mas certamente é solução para os principais interessados, que encontram alternativa de ganho e realização. E até para governos, que de outra forma ver-se-iam às voltas com exércitos de desvalidos, insatisfeitos, eventualmente revoltados.

Frutas e cores

De volta às impressões certamente nada originais deste surpreso viajante, dizia que nas ruas vivas e vibrantes de Cartagena de Índias vende-se muito alimento. E nisso encontrei o que me pareceu outra particularidade: enquanto em outras plagas a comida tradicionalmente oferecida na rua é altamente condimentada, pesada – dos deliciosos acarajés e vatapás das baianas aos idem tacacás com tucupi do Ver-o-Peso belenense –, nestas paragens caribenhas os ambulantes ofertam muitas e coloridas frutas, na maioria já descascadas, prontas para o deleite de quem sabe apreciá-las: são guacamoles, papayas, fresas (morangos), mangas maduras ou verdes (estas servidas com limão e sal), citros variados e até uns improváveis tomates del arbol (de que só conheci o refresco, saboroso).

Saúde (e governos) agradecem

Talvez por isso pareceu-me encontrar nas ruas de Cartagena número muito menor de obesos do que, por exemplo, nas cidades brasileiras – nas do mundo rico chegam a ser maioria, dizem e de fato assim creio haver constatado em Nova Iorque, Montreal – Paris seria exceção, pelo que vi em minhas poucas andanças fora de nuestra América.

São apenas impressões, obviamente, fruto do olhar simpático de um observador casual do Caribe colombiano. Não pretendi estudar os hábitos alimentares dos cartaginenses nem teria tempo para isso numa única semana de vadiações na linda cidade e arredores.

A confirmar-se, entretanto, o prestígio das frutas na comida habitual, as autoridades do departamiento de Bolívar terão obtido – de graça!… – preciosa ajuda na preservação da saúde pública…

Por que reprimiriam?

O certo é que as autoridades locais não parecem preocupadas com a copiosa presença dos ambulantes, muito menos se ocupam em reprimir-lhes as atividades. Perguntei a quatro ou cinco deles se haveria restrições, quiçá perseguições policiais e todos negaram; uma falante señora chegou a estranhar, enquanto cortava gordas fatias de manga verde e expremia-lhes limão, para meu deleite:

“¿Y por que lo harían?, ¡estamos a trabajar!”

Data ‘nacional’

Calhou de estar em Cartagena justo nos dias que antecedem o 11 de novembro, data que marca a ‘independência’ da região; algo como uma “data nacional” segundo o sentimento dos cartaginenses.

Encantou-me a maneira como se a comemora: desde o sábado anterior o povo entrega-se a animadas festividades que incluem espetáculos musicais, danças típicas, dramatizações.

Foi interessante, para um brasileiro, constatar que aqui não se homenageia a data magna com a sisudez dos desfiles militares nem a contenção das antigas celebrações escolares. Ao contrário, é uma grande e concorrida festa popular onde se dançam salsa, cumbia e outros ritmos que não identifiquei, com a informalidade e irreverência de um povo alegre, desinibido.

‘Carnaval’ cívico

É mais ou menos como se no Brasil o Carnaval acontecesse em torno de 7 de setembro e seu intuito fosse comemorar a independência com muito samba, frevo, baião, carimbó…

O que me lembra que faz tempo os brasileiros não festejamos as ditas efemérides nacionais. Até houve um tempo em que o fizemos, a partir do estímulo ao ‘sentimento nativista’ durante o Estado Novo (1937–45). Naquele período, e também sob a vigência da Constituição democrática de 1946, os alunos dos cursos então chamados primário, ginasial e colegial éramos convocados a desfilar nas datas nacional, estaduais, municipais e era com gosto que aceitávamos a convocação, ao que me recorde.

Independência irreverente

Sob os governos autoritários pós-1964 não se cogitou de manifestação cívica que não fosse militar em tais datas. Nem aos governantes terá parecido prudente convocar, por exemplo, a participação dos estudantes, que certamente se converteria em protestos contra o regime…

De qualquer forma, nada do que se fez no Brasil para celebrar eventos históricos pode comparar-se à alegria irreverente com que se comemora a ‘independência’ de Cartagena.

Organizado, sem exagero

Sim, as escolas participam, seus alunos reúnem-se em grupos, diria, mais ou menos organizados para cantar, dançar e dramatizar cenas históricas ou folclóricas, tudo com muita animação.

O ‘mais ou menos’ vai à conta da impossibilidade, talvez inconveniência de estruturar formalmente o jeito solto com desfilam (marchar, jamais!) crianças, adolescentes e jovens, assim como adultos de outras instituições oficiais ou comunitárias.

Mal comparando

Acho que comparei mal os festejos de Cartagena com o carnaval brasileiro. Talvez até haja alguma semelhança com nossos tradicionais blocos, não oficiais nem oficiosos, ainda remanescentes, mas certamente nada se parece com os desfiles de escolas ditas de samba, demasiado formais e burocráticos. Se puder estabelecer um paralelo será com grupos pernambucanos de maracatu, de bumba-meu-boi maranhense ou boi-bumbá amazonense, das cavalhadas, festas do divino, ternos de reis… – enfim, com manifestações espontâneas da cultura popular.

Armas floridas

Não que a festa recuse-se admitir questões atuais.

Num dos alegres desfiles a que assisti um grupo dramatizava a questão da violência e festejava a recente vitória da paz, representada na Colômbia pelo fim de décadas de insurreição armada. Os estudantes portavam simulações de espingardas de cujos canos brotavam flores e portavam faixas temáticas da pacificação.

Uma delas faria o encanto de meu amigo José Carlos Almeida; tento citá-la conforme recordo, traduzindo livremente:

“Nossas armas são as flores, nossa luta é pelo perdão e reconciliação”.

Referem-se à pregação de setores da Igreja Católica latino-americana e sua “ética do perdão e reconciliação”, da qual José Carlos é ativo intérprete e difusor.

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