Conjuntura & Atualidade | A decadência do macho e a violência contemporânea contra a mulher


Pululam nos noticiários cotidianos um verdadeiro cenário dos horrores de uma categoria de violência do homem contra a mulher. Quando classificamos ou distinguimos a violência desferida pelo homem, tendo a mulher como alvo, objeto e sujeito receptor dessa violência, há razões próprias para a não homogeneidade desse processo. Geralmente a maior causa da violência contra a mulher se dá pelo fato dela ser mulher. Quando não muito, as justificativas mais comuns são aquelas as quais a mulher não respeitou o poderio, autoridade ou supremacia da condição masculina.

A contemporaneidade afetou sobremaneira os alicerces do cosmos masculino. A cultura patriarcal não encontra sustentação ou legitimidade na tessitura social, nas representações, nem tampouco, no campo material da subsistência. As narrativas que sustentavam os espaços de poder do homem na cultura ocidental se esvanecem diante das novas conformações, fluxos e perspectivas em todos os âmbitos sociais. A pós-modernidade passou a exigir no campo do trabalho certo refinamento, sutileza e flexibilidade, que o homem não fora educado a desenvolver. O mundo do “macho” se constituía balizado por um direcionamento linear, no qual o seu papel social e seus espaços de poder já se encontravam potencialmente abertos na sociedade. Quando essa linearidade se dissolve, bem como, as demandas para a ocupação dos espaços de poder na sociedade passaram a valorizar aquilo que o homem não possuía, uma antagonização de gênero se acentua entre homens e mulheres.

As tentativas das mulheres em rechaçar o protagonismo masculino em detrimento da autonomia feminina foram muitas, mas, com o domínio institucional da realidade a cargo do homem, invariavelmente foram mal fadadas ou invisibilizadas. Um caso típico foram as “histéricas de Freud”, que apresentavam sintomas, reações orgânicas e psíquicas que não se encaixavam na literatura médica e essencialmente masculina da época. Ao invés de reconhecer aquelas reações como uma expressão de resistência, de rechaçamento da nulidade social que a mulher ocupava, criou-se uma tipificação clínica para enquadrar aquelas manifestações. Muitos dos discursos ditos científicos, contribuíram para a construção de uma pedagogia cultural de enquadramento da mulher a certos espaços, funções e comportamentos sociais.

Assim, a mulher foi submetida a uma subalternidade na qual a violência deflagrada contra ela parecia legítima e até mesmo necessária em algumas condições. Um exemplo ilustrativo dessas atrocidades são os fatídicos crimes “passionais”, quando o homem, em nome da sua honra resolve matar a mulher por não corresponder ao seu arbítrio. O pior de tudo é que muitos casos emblemáticos dessa natureza alcançaram a absolvição. A sujeição da mulher estava tão introjetada culturalmente que a própria sociedade ratificava a aplicação da violência como remédio contra a indisciplina feminina.

No mundo industrial as máquinas eram complementos da força do homem. Mas, as mesmas máquinas que empoderaram os homens os substituíram rapidamente. O conhecimento passou a governar todos os processos sociais. Os homens tinham os seus espaços e começaram a perder as suas funções nesses espaços. Lacan ousou a dizer que “a mulher não existe”, não pretendendo com esta afirmação menosprezar a mulher, mas tentando demonstrar simbolicamente que não havia um objeto para representa-la, no caso o falo. Exatamente por este “vazio simbólico”, as mulheres podem se transformar em qualquer coisa. São maleáveis, afeitas as transformações e inovações, se adaptam a novas rotinas e processos com muito menos sofrimento do que os homens.

Enfim, todo esse arrazoado para tentar estabelecer uma correlação desse esvaziamento do poderio simbólico do homem e a violência contra a mulher. Na medida em que a mulher se desponta na sociedade como sujeito autossuficiente, disputando os espaços outrora hegemonicamente reduto dos homens, e no campo afetivo, exigindo amor de quem tradicionalmente foi condicionado a receber, a insegurança recai sobre o universo masculino. Até que essa nova configuração simbólica se converta efetivamente em valores atávicos nos planos mais subjetivos da nossa cultura, ainda assistiremos os estertores do macho sob a forma de violência contra a mulher.


Paulo Passos é graduado em Ciências Sociais, mestre em Ciência Política, doutor em Ciências da Religião e professor da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

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