Artigo | Medicina fetal, mais uma porta para a vida

Poe Américo Tângari Jr.


O motorista começa a sentir um desconforto no meio do trânsito, de repente o coração acelera e, além da taquicardia, sobrevém o suor e o mal-estar – uma sensação incomum para quem nunca se queixou de nada no coração. Mas é preciso agir rápido, pedir ajuda a outros motoristas em volta, ligar para algum parente ou acionar um aplicativo de emergência pelo celular. Pode ser o início da manifestação de alguma doença cardíaca, da qual nunca suspeitou. Mas agora ela se revela e a situação pode se agravar caso não seja atendido no hospital mais próximo.

Pode ser um sopro no coração ou outra deformação; bem leves na infância e não detectadas na época por exames normais do pré ou pós-natal, mas que se desenvolveram ao longo do tempo por uma série de fatores e que agora exigem tratamento. Para se prevenir desse susto, as pessoas devem manter sempre em boa forma essa bomba no peito que faz circular a vida pelo corpo. Convém procurar um cardiologista e providenciar todos os exames indicados para certificar-se de que não é portador de nenhuma dessas doenças ocultas, herança genética ou não.

Na verdade, muitas pessoas nem precisariam se preocupar com as doenças ocultas, caso fossem corrigidas ainda antes do nascimento. Com a evolução da medicina e a sofisticação de exames como ecocardiograma fetal e ultrassonografia, deformações podem ser diagnosticadas ainda no útero. Graças a isso, hoje são salvos muitos bebês que poderiam partir antes ou logo depois do nascimento.

Pelos batimentos cardíacos ou pela respiração, os médicos podem fazer uma criteriosa avaliação da saúde do feto – uma análise delicada, aos cuidados do radiologista, do especialista em medicina fetal, do cardiologista fetal, do intervencionista, do pediatra e do anestesista.

Esses procedimentos em geral são muito seguros para a mãe, com riscos extremamente limitados. Porém, podem desencadear trabalho de parto prematuro ou até mesmo levar ao óbito fetal, o que é pouco frequente. Por isto, a indicação deve ser discutida em detalhes com o cardiologista fetal.

As cirurgias não são curativas, mas parte de um planejamento de recuperação de ventrículos e preparo da circulação para a vida pós-natal. Dependendo da patologia, o recém-nascido será submetido a uma programação terapêutica que pode constar de cateterismo cardíaco e/ou cirurgia cardíaca.

O sopro no coração, em princípio, não se enquadra entre as doenças mais perigosas para o feto. É um ruído produzido pela passagem do fluxo de sangue por meio das estruturas do coração. Pode ser funcional ou fisiológico (sopro inocente), ou patológico em decorrência de defeitos no coração. Cerca de 40% a 50% das crianças saudáveis apresentam sopros inocentes sem nenhuma outra alteração e com desenvolvimento físico absolutamente normal.

Nos adultos, predominam os sopros que aparecem como complicações de cardiopatias provocadas pela febre reumática ocorrida na infância, doença que também pode afetar o sistema nervoso central e o sistema osteoarticular.

As intervenções mais comuns no útero são:

– Valvoplastia aórtica fetal: para dilatar a valva aórtica do bebê (aquela que leva sangue do lado esquerdo do coração para todo o corpo), que se encontra muito apertada e impede a passagem normal do sangue. É o que se chama de estenose aórtica crítica. Esta anomalia provoca consequências graves no coração fetal e pode levar a um quadro grave de hidropisia fetal (insuficiência cardíaca com inchaço generalizado do feto) e óbito.

– Valvoplastia pulmonar fetal: é a abertura da valva pulmonar (a que sai do ventrículo direito e leva sangue para o pulmão) com o emprego do balão. Quando a valva pulmonar está muito fechada, o ventrículo direito tende a parar de crescer. A valva tricúspide muitas vezes apresenta insuficiência (deixa voltar sangue do ventrículo direito para o átrio direito), o que pode complicar a circulação fetal e levar a insuficiência cardíaca. Com a cirurgia, o ventrículo direito se desenvolve normalmente ao longo da gestação e resulta em uma circulação pós-natal com dois ventrículos, o que melhora muito o prognóstico da doença.

– Atriosseptostomia: é um procedimento menos comum, realizado em casos bastante selecionados de síndrome de hipoplasia do coração já instalada. Se persistir na vida intra-uterina, a anormalidade impede que o sangue oxigenado atinja o lado direito no coração após o nascimento, com o paciente apresentando taxas muito baixas de oxigênio no sangue, o que é incompatível com a vida.

São muitas as opções para salvar vidas, além das cirurgias cardíacas fetais. É possível a correção, por exemplo, de uma doença chamada mielomeningocele, uma má-formação na coluna dos bebês, que pode deixar como sequela a hidrocefalia (acúmulo de água no cérebro, que causa distúrbios mentais e motores). Doenças pulmonares também já podem ser tratadas ainda no útero.

Algumas alterações ocultas podem persistir nos adultos, sem sopros, e que passaram despercebidas, como as comunicações entre os átrios (CIA) e ventriculares (CIV).

Como se vê, a medicina continua a evoluir para cumprir sua missão de salvar vidas e de proporcionar uma existência mais confortável, sem maiores sobressaltos. E se a prevenção é fundamental no útero, imagine na idade adulta.


Américo Tângari Júnior é cardiologista do Hospital Beneficência Portuguesa

Seja o primeiro a comentar on "Artigo | Medicina fetal, mais uma porta para a vida"

Faça um Comentário

Seu endereço de email não será mostrado.


*