Marco Antônio Pontes | Cartórios, corporações e nossos desastres também semânticos

Tributo a Octavio Malta (Última Hora, Rio, circa 1960)
Marco Antônio Pontes – [email protected]


Cartórios

Não conheço melhor síntese das condições e contradições da estrutura produtiva brasileira: […] um imenso arquipélago de cartórios empresariais”.

Assim Fernando Dourado (Revista Será?, Recife, 31.03.2017) desnuda a essência da dita livre iniciativa, em nossa atual edição do capitalismo de estado – o mesmo invulgar capitalismo cujos agentes privados abominam riscos e transferem-nos à sociedade – que tem presidido as relações econômicas desde, pelo menos, o ciclo militar 1964–1985.

Sua estratégia de sobrevivência e crescimento é aglutinar-se em grupos de pressão (“cartórios”) para obter favores e recursos do tesouro.

Corporações

Aos cartórios (ou corporações) empresariais correspondem corporações (ou cartórios) supostamente profissionais.

Supostamente porque seus dirigentes estão ‘desligados da produção’, para usar o conceito marxista que explica o fenômeno: ocupados na burocracia sindical, eles não trabalham como seus representados, assim distanciam-se da base, passam a agir em função dos próprios interesses e só subsidiariamente atendem aos da categoria.

Divórcio absoluto

(Aqui pode ser útil ‘fulanizar’, citar um exemplo. Lembro aquele metalúrgico de São Bernardo que fez longa carreira sindical, tornou-se líder de uma potente corporação, daí passou à política regional e nacional. Fundou um partido que o levou à mais alta função executiva do estado e então elegeu o populismo sua estratégia de manutenção do poder – a par da corrupção, habitual decorrência da escolha. E privilegiou os interesses do grande capital, em detrimento do trabalho – inclusive de seus antigos colegas de profissão. É o divórcio entre cúpula e base, levado às últimas consequências.)

Casamento por interesse

Chega-se ao pior dos mundos se cartórios empresariais e corporações profissionais (ou vice-versa) juntam-se em alianças táticas, sob interesses episodicamente coincidentes.

Tal se deu, por exemplo, quando a indústria automobilística e segmentos afins, decadentes, perderam mercado e ameaçaram desempregar massivamente; as corporações empresariais reivindicaram, os cartórios sindicais encamparam a exigência e o governo populista prontamente os atendeu.

Rebentos espúrios

Tal conúbio só poderia gerar rebentos espúrios: queda de arrecadação tributária, falência dos serviços do estado e mais sofrimento para os que deles dependem, desorganização da economia, estagnação, inflação, desemprego…

Chega-se assim ao momento em que perdem quase todos – além dos mais pobres, sempre a pagar a conta e da classe média, perde também parte da elite econômica. E esta, que tem voz, reclama e denuncia o processo.

É este o fenômeno que explica o impasse que algema o estado e imobiliza a política: os estratos dominantes dividiram-se na disputa do botim.

Desastres institucionais…

Bobagem, invencionice de jornalistas sem coisa melhor a pensar, dizer que Rafael Maduro tentou um ‘autogolpe’ quando, por intermédio dos juízes de seu supremo tribunal, quis destituir das funções o Legislativo da Venezuela.

Pois o projeto de ditador, via maioria teleguiada da corte, obviamente não se golpeou, porém as instituições de seu país.

…e equívocos semânticos

A estultice começou quando o então presidente Juan Maria Bordaberry, com apoio militar, fez algo semelhante no Uruguai – só que teve sucesso e suprimiu o estado de direito de 1973 a 1976.

Foi a primeira vez em que a imprensa usou a expressão ‘autogolpe’, a batizar um desastre institucional com um equívoco semântico. Para desespero de Eduardo Galeano, glória do jornalismo latino-americano, que se insurgiu contra o golpe, teve que exilar-se e não se esqueceu de verberar a palavrinha mal colocada.

Que depois se repetiria no Peru (anos 1990) quando o presidente Fujimori virou ditador.

Palavras… e palavras

São apenas palavras – objetaria alguém pouco atento à semântica. Mas há que ter mínimo cuidado com o que se diz, se deseja transmitir exatamente o que se pensa.

Ademais as palavras, como ensina Noam Chomsky, não são neutras e sua escolha costuma revelar intenções ocultas.

Defendem…

Aplica-se perfeitamente a lógica de Chomsky à maneira por que se denominam os agentes químicos utilizados na lavoura e pecuária – inseticidas, herbicidas…

Agricultores chamam-nos ‘defensivos agrícolas’, mas para militantes da ecologia eles são ‘agrotóxicos’.

…ou agridem?

Outro exemplo: quando os Gracie introduziram o jiu-jitsu no Brasil, na subsequente importação do judô, do caratê e até na difusão da brasileiríssima capoeira, chamavam-se essas práticas ‘defesa pessoal’.

Mais tarde, a revelar o advento destes nossos tempos violentos, o nome virou ‘artes marciais’.

Quer dizer: em vez de defesa, prepara-se a guerra.

Preguiça editorial

É mais óbvia outra distinção que a imprensa teima em ignorar.

Os militantes clandestinos contra o autoritarismo que nos infelicitou de 1964 a 1985 ocultávamos a identidade sob ‘nomes de guerra’, denominação tradicional que remete a embates europeus do século XIX.

Para a repressão, em seu jargão característico, seriam ‘codinomes’ – expressão que jornalistas preguiçosos adotaram e usam até hoje.

Terror ou guerrilha

A ditadura ainda inventaria mais corrupção semântica: apelidava ‘terroristas’ os que se insurgiam, armas na mão, contra o regime.

Esses preferiam denominar-se ‘guerrilheiros’, a evocar a estratégia de enfrentar com parcos recursos exércitos poderosos, vitoriosa em Cuba com Fidel, Che Guevara e compañeros e derrotada, com sacrifício do líder – outra vez Guevara – na desastrada (e heroica) aventura na selva boliviana.

 

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