Tributo a Octavio Malta – (Última Hora, Rio, circa 1960)
Marco Antônio Pontes – [email protected]
Carlos Heitor Cony
Um anarquista entristecido, humilde e inofensivo
O mais triste de envelhecer é perder os amigos, dos quais nos distancia a vida oua morte definitivamente separa. E quando morrem uma sensação de culpa acresce-nos à dor, a de não ter feito o suficiente para conviver mais, ficar mais perto. A gente quase se penitencia por sobreviver.
Cony e eu não fomos próximos ao longo de sua longa vida e da vida alongada que já vivo, oxalá a emular-lhe a longevidade e passar dos noventa com semelhante vigor intelectual – mesmo a anos-luz de seu brilho. Encerrados nossos primeiros e frequentes, intensos contatos, ocorridos entre 1965 e 1968, pouco nos encontramos.
Só duas vezes o visitei na sededa Bloch Editoresna Praia do Russel, em que hibernounos anos de exclusão e perseguição.Outra ocasião soube que estava em Brasília, procurei-o.No bar do Hotel Nacional premiou-me com horas dediálogo ameno, os temas do momento aos poucossubstituídos porlembranças ereavaliações de situações partilhadas. Supreendentemente,malgrado os dilatados intervalos, todos os três encontros pareceram de velhos amigos, conversas que pareciam retomar as de uma semana antes.
É curiosa a relação dos comuns mortais com as celebridades do mundo, diria, cultural – nada a ver com a desinibição agressiva das maltas que assediam ídolos ‘sertanejos’ e demaissubmúsica, dos esportes… Colocamos‘um pé atrás’, tememos – sei lá – incomodar…
Por exemplo, há coisa de três anos estive em evento protagonizado por Eduardo Galeano, velho amigo; da plateia encantei-me com a verve esfuziante do escritor,parceiro de velhas batalhas contra o autoritarismo latino-americano. Pretendia aproximar-me, quem sabe combinar uma conversa; mas embora trocássemos olhares de reconhecimento, anteos‘fãs’ que o cercavam cedi à timidez, pensei: deixe-se estar, depois terei outras oportunidades… Não tive; ele fez-me a desfeita de morrer antes disso.
Foi assim também numaapresentação de Carlos Lira no Teatro Dulcina, em Brasília,há mais de vinte anos.Ele percebeu, na primeira fila, minhas filhas de 10 e 12 anos a cantar com ele quase todas as composições e registrou o fato, para aplausos da plateia.Eu bem quisaproveitar o mote para rever nos bastidores o antigoparceiro no Centro Popular de Cultura da Une, apresentar-lhes Patrícia e Larissa que se encantavam desde o berço com sua música,talvez reatar o velho companheirismo.Porém…
Felizmente superei a barreira quando assisti a audição de Mário Lago, num dos palcos deaplaudidíssima tournée pelo Brasil poucos anos antes de morrer. Na primeira tentativa fui barrado pela eficaz proteção do filho e produtor, que conhecera criança; eu era, porém, apenas umentre dezenasde aficionados que forçavam entrada nos camarins. Voltei no dia seguinte e consegui passar-lhe a ‘senha’: “Vocês não moraram na rua quase, quase, número quase, apartamento quase?”Ele abriu largo sorriso e levou-me ao mestre, que me recebeu com abraços e a sonora, famosa gargalhada.
(A ‘senha’ foraum endereço da família, como o fornecia Mário Lago; decodifico-a:rua Bulhões de Carvalho 68, apartamento 23.)
Venci também a timidez quando procurei Ênio Silveira, refinado intelectual que construiu a Editora e Livraria Civilização Brasileira, a maior do Brasil até ser destruída pela ditadura pós-1964. Reencontrei-o em sua casa, que frequentara nos anos de glória sempre repleta de ficcionistas, poetas, dramaturgos, ensaístas… – e vi-o sozinho, ausentes os velhos convivas porque presos, exilados, ‘desaparecidos’, outros quem sabe temerosos – e livre dos oportunistas:esses, como lhes é próprio, desertaram. Gastamos tempo em conversas amenas e outras nem tanto, a tentar entender por que malograram nossos sonhos. Pude reencontrá-lo outras muitas vezes, antes que se fosse para sempre.
Pois foi justo com Ênio e Mário, amigos comuns, que conheci Carlos Heitor Cony, quando a Civilização Brasileira editava-lhe os livros, todos de enorme sucesso.
Aos leitores que tiverem a paciência de acompanhar-me mais um pouco nestas saudosas lembranças quero contar duas manifestações emblemáticas que testemunhei do invulgar escritor, após situá-las e a este escriba no devido contexto.
Um rápido início de carreira em jornais do Rio – Correio da Manhã, onde me adotou o eterno mestre Otto Maria Carpeaux, Jornal do Brasil, Última Hora – e simultânea militância no Partido Comunista aproximaram-me (era 1962–63) de alguns dos mais brilhantes intelectuais brasileiros de então; além dos citados convivi com Mário da Silva Brito, Paulo Francis, Carlos Nelson Coutinho, Antônio Silva Melo, Leandro Konder, Alex Vianny…; os mais velhos como que adotaram intelectualmente o jornalista principiante; com Leandropartilhei angústias e esperanças de nossos verdes anos, enquanto o jovem filósofo iniciava-me em renovadosestudos do marxismo, sobretudo no pensamentodeGiorgyLukacs, Antonio Gramsci,PalmiroTogliattie seu promissor eurocomunismo, infelizmente efêmero.
Pequeno salto no tempo e no espaço:1966, Juiz de Fora,eu arriscava com dois amigos, companheiros comunistas, umentão inusitado empreendimento político-cultural, a Livraria Sagarana, que oferecia além de livros ‘um lugar de discussão dos problemas nacionais’, como prometíamos. Contamos desde logo com o apoio de Ênio Silveira, além de Otto, Mário e outros intelectuais que arregimentou – em destaque, Carlos Heitor Cony.
Nosso esforço em oferecer novas, não raro revolucionárias alternativas culturais e políticas numa cidade eminentemente conservadora – apesar da ativa militância sindical, estudantil e mais uns poucos intelectuais que enfrentavam com escasso êxito ostatus quo e seus tabus – incluía promoções como tardes-noites de autógrafos dos escritores editados pela Civilização, entrevistas coletivas, debates públicos sobre a situação nacional,entre eles os animados “Encontros com a Civilização”, sucesso de crítica e público no Rio que Ênio levava a Juiz de Fora para prestigiar nossa Sagarana.
À época eu já conhecia Cony o suficiente para compreender e respeitar-lhe o ceticismo, que os ‘progressistas’ às vezes rotulávamos “alienação”; o consequente pessimismo (“Se você é otimista deve estar mal informado” – dizia); a inclinação filosófica para a anarquia, que o afastava de grupos ideológicos “institucionalizados” (a classificação é dele); a cabal recusa em ‘definir-se’ ideologicamente (ironizava: “Não sou suficientemente inteligente pra ser de esquerda nem burro bastante pra ser de direita.”).
Então Ênio Silveira realizou em Juiz de Fora um ‘Encontro com a Civilização’ que mergulhou na polêmica então em curso: a participação das ‘forças progressistas’ em eleições viciadas pelo autoritarismo.
Estávamos em 1966, a ditadura mesmo ainda “envergonhada” (apudElioGaspari) dera um ‘golpe no golpe’ no ano anterior e instituíra eleição indireta dos governadores dos estados.
Foram discussões acesas, polarizadas. De um ladoos ditos‘radicais’, entre eles Paulo Francis, pregavam o boicote à “farsa eleitoral”: engajar-se, em qualquer caso, significaria coonestar a ditadura. Do outro os defensores da “linha justa” do ‘Partidão’, velhos e jovens comunistas como Mário Lago e Leandro Konder, advogávamos a ocupação de quaisquer espaços, mesmo os ‘consentidos’, para defender nossas ideias,mobilizar apoio popular e eleger parlamentares comprometidos com a causa democrática.
O ‘Encontro…’tendia ao impasse.A maioria dos debatedores apostava na participação mas a verve de Francis e outros, com propostas incisivas, empolgava a plateia. E então um inesperado moderador baixou o tom guerrilheiro da polêmica e propôs sensatez: “Será que precisamos?, os que nos opomos ao autoritarismo, formar bloco ideológico fechado, sem espaço a nuances de pensamento e alternativas de ação?”
O leitor já terá identificado quem encontrou a solução de consenso. Ao propô-la Cony opôs-se, sem contraditar diretamente, ao amigo Francis, que por sua vez (touché!) cooperou na convergência. Não por acaso Francis e Cony, com Otto Maria Carpeaux, pareceram-me(parecem-me) os mais extensamente eruditos eintensamente informados dos participantes daquele encontro com a civilização. Que se encerrou, aliás, com um breve discurso no qual um insuspeitado, moderado e hábil político Cony citou frase que ouvi então pela primeira vez eresgato, se in verbis, ao menosna essência, como em todas as demais referências nestetexto:
“Há que ser pessimista no pensamento e otimista na ação.”
O outro episódio (pois não prometi dois?; paciência!, leitor) tem nada a ver com a lides políticas da época e tudo com política em mais amplos termos, com a história e seus rebatimentos nos que a vivemos e sofremos. Revela uma insuspeitada faceta da personalidade de Carlos Heitor Cony: não o duro oponente da ditadura, como na crônica e livro O ato e o fato, nem osurpreendente moderador de um conflito radical entre radicais e moderados, muito menos o intelectual cético, distante das agruras políticas e fraquezas de seus protagonistas. No acontecido emergiu o Cony solidário, amoroso no zelo dos amigos,qualidade que só compreendi muito depois, passados os embates daquela quadra.
Ocorreu que, encerrado um daqueles encontros promovidos por Ênio Silveira com a Livraria Sagarana, confraternizávamos na casa de Assuene Ribeiro (saudades!) uma dúzia de amigos de Juiz de Fora e outros tantos visitantes. Não vou lembrar todos, portanto limito-me a identificar os protagonista do acontecido: Otto Maria Carpeaux e Carlos Heitor Cony.
Falávamos do evento, portanto de política, história e ouvíamos música: jazz, bossa nova, as canções ‘de protesto’ daqueles tempos e os clássicos de todos os tempos. Alguém teve a ideia de pora tocar um discode velhos hinos e canções revolucionárias, de variada estirpe (pontificava a Internacional em múltiplas versões: orquestrada e em russo, espanhol, inglês, português: “De pé!, ó vitimas da fome…”).
E eis que ressoaram, desgraçadamente num raro hiato do vozerio, os acordes de DeustchlandUberAlles, o hino nazista de letra capenga (disseram-me amigos versados em alemão) e melodia empolgante, ao jeito de Wagner.
Alguns assentávamo-nos ao chão, inclusive o sexagenário Otto. Aos primeiros, belos acordes que evocavam um tempo muito feio ele saltoucom insuspeitada agilidade, a gritar“Não!, não!, isso não!…”e investiu contra o inocente ‘toca-discos’,que teria destruído não fosse a pronta intervenção de Cony; ao perceber antes de todos a gaffe de um improvisado discotecário, agiu prontamente, abraçou o amigo e levou-o para outro cômodo, onde afinal o acalmou. Depois ficamos sabendo que o mestre tinha acessos incontroláveis de fúriase confrontado com lembranças abruptas do horror nazista, que assassinara parte de sua família e forçara os remanescentes ao exílio. O resto da noite e o dia seguinte esteve sob os cuidados Cony, que o levou de volta ao Rio.
Soube, mais tarde, que esteve próximo de Carpeaux até o fim. A parceria resultara da conjunção de ideias, conceitos, propostas; a amizade transcendeu o ideário.
Em tudo o que li na imprensa sobre Cony nos últimos dias, as despedidas e os merecidos elogios, faltou o registro desse lado carinhoso, mais que solidário, de sua personalidade.
Esses atributos haverão de surpreender aos que guardam dele a imagem passada pelos artigos que assinou nos últimos anos na imprensa – a do escritor desiludido, poucoafeito ao convívio,de certa formaconfirmando a autodefinição com que se apresentou à Academia Brasileira de Letras:“Um anarquista entristecido, humilde, inofensivo”.
Parecem no entanto naturais, esperados,a seus amigos. Mesmo os relapsos, como este saudoso depoente.
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