Processo migratório foi muito superior ao previsto na década de 1960
Por Gilberto Costa
A inauguração de Brasília, há 60 anos, foi um marco no processo de interiorização do país, que contou com um conjunto de fatores favoráveis – entre eles, a vontade política de Juscelino Kubistchek apoiada na racionalidade de planejadores que conceberam e construíram a cidade.
A hegemonia do desenvolvimentismo de JK não se estabeleceu sem resistência e sem crítica. Uma delas é a de que a concepção de Brasília foi falha e, apesar de idealizada como um projeto moderno, é uma grande cidade tipicamente brasileira, que padece de problemas agravados pela desigualdade social, como a dificuldade de acesso aos serviços de saúde pública e ao transporte coletivo. Brasília não é uma “ilha da fantasia” em comparação ao Brasil.
Para falar desses assuntos, a Agência Brasil entrevistou o diretor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), Lucio Remuzat Rennó Junior.
Com doutorado na Universidade de Pittsburgh (EUA) e pós-doutorado em estudos latino-americanos no German Institute for Global and Area Studies, em Hamburgo (Alemanha), Lucio Rennó foi presidente da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), entre 2015 e 2018, onde chefiou diversas pesquisas sobre a população e a qualidade de vida em Brasília.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
O projeto de trazer a cidade para o interior do país é bastante antigo, por que só foi se concretizar em 1960?
Tem muito a ver com o momento histórico, com a fase que o Brasil se encontrava. Era uma fase de expansão econômica, de expansão de sua presença no continente e como potência regional. O espírito do tempo era desbravador. Era um momento pós-Segunda Guerra Mundial e de estabilização das economias da América Latina. Uma janela de oportunidades que foi aproveitada por uma liderança política extremamente ambiciosa e pouco acomodada. Foi uma convergência desses fatores, também aproveitados por planejadores, que mudaram em parte a geografia humana no Brasil, que tinha à época a população mais concentrada na faixa litorânea.
Juscelino Kubistchek escreveu, em um artigo publicado no ano de sua morte (1976) que somente em 1970 cessaram as ideias de retornar a capital para o Rio de Janeiro. O escritor e cartunista Millôr Fernandes dizia que Brasília era “o desnecessário se tornando irreversível”. Por que a transferência da capital foi recebida com antipatia por alguns setores da sociedade e da política?
Era um problema mais acentuado para as elites políticas, culturais e econômicas que estavam situadas no Rio de Janeiro ou que tinham o Rio como sua base. É óbvio que enxergavam a transferência da capital como perda de influência e de peso político. A resistência tem a ver com a disputa de poder regional, com a preocupação legítima da população do Rio com a perda de status de capital e dos benefícios decorrentes. Toda mudança no que tange a administração pública é acompanhada de resistência. Não existe mudança consensual quando afeta o status quo. A vinda para Brasília interferiu também na vida pessoal de quem trabalhava na administração pública. Essas pessoas teriam que vir para um lugar pouco desenvolvido, que não tinha o charme do Rio de Janeiro, uma cidade muito ativa culturalmente e cheia de alternativas de lazer e entretenimento.
É comum se ouvir que Brasília é uma “ilha da fantasia”. Mas os indicadores de desigualdade socioeconômica e problemas como os de transporte público, comuns em outros lugares do país, assinalam que não é bem assim. Em quem sentido somos, ou já fomos, uma ilha da fantasia? Em que sentido somos uma autêntica capital do Brasil?
O conjunto do Distrito Federal e as adjacências não têm nada de ilha da fantasia, pelo contrário. Porém, se pensar exclusivamente na qualidade de vida da região administrativa do Plano Piloto, Lago Sul, Lago Norte, Sudoeste e Noroeste, há, de fato, uma situação muito privilegiada. Temos, portanto, uma ilha da fantasia dentro do Distrito Federal, comparando essas áreas com outras regiões administrativas. Esse círculo, que corresponde ao centro da capital, é muito afluente e é comparável a países desenvolvidos. O DF é caracterizado por essa concentração de riqueza, de atividade econômica e dos melhores empregos. O outro lado da moeda mostra que somos muito desiguais. Nos círculos que vão se distanciando da área central, há um nível de renda mais baixo e de qualidade de vida muito inferior. O Distrito Federal é uma das unidades da Federação mais desiguais por causa desses atributos. Se a gente coloca nessa conta a região metropolitana, que fica em Goiás e chamamos de Entorno do DF, especialmente nos municípios ao sul e sudeste do Distrito Federal, aí a situação é muito mais grave. Nas saídas para Goiânia, Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro, há um adensamento populacional enorme com oferta insuficiente de serviços, e que faz com que as pessoas que moram nesses lugares tenham que ter um movimento pendular para trabalho e para uso dos serviços públicos e privados. Isso torna os problemas de mobilidade e de transporte público ainda mais acentuados.
A configuração dessa desigualdade acompanhou o processo de ocupação do DF. Mas o projeto de Brasília previa que dois terços da massa de imigrantes que veio para cá construir a cidade seria absorvida no futuro, mesmo com baixa escolaridade e qualificação, pela administração pública, pelo comércio local ou pela indústria ou lavoura incipientes. O planejamento também acreditava que um terço retornaria às suas regiões de origem, de onde saíram para terem oportunidades melhores. Em sua concepção, Brasília já era elitista?
Brasília foi pensada para ser única e exclusivamente sede de governo. Para abrigar as pessoas que viriam para cá para trabalhar no Estado e, secundariamente, para as atividades de apoio e de sustento à população dedicada à burocracia. A cidade não foi desenhada para todos. Tinha um setor específico da sociedade em mente. Nesse sentido, de um propósito para ser construída, pode-se dizer que Brasília já era elitista. É possível dizer que houve equívocos ou problemas na construção de cenários e de simulações sobre como ocorreria o processo de ocupação do território. Tudo isso foi feito prevendo que o fluxo migratório não teria o volume que acabou tendo. Apesar de saber que um dos motivos para a transferência era justamente povoar uma área considerada deserta e diminuir a pressão populacional nas cidades litorâneas. É meio contrassenso: planejou-se criar o fluxo migratório, mas, de certa forma, não se esperava que esse processo tivesse tanto sucesso. A área metropolitana, que envolve o DF e o Entorno, tem hoje 4 milhões de pessoas. O processo migratório posterior aos anos 1960 foi muito acentuado, em especial nos anos 1980 e 1990. Isso estimulado por políticas habitacionais e a criação de novas regiões administrativas, as antigas cidades satélites. Não sei se a gente pode culpar os planejadores. O crescimento e o adensamento populacional foram muito superiores ao que era previsto. Isso gerou problemas de gestão dos equipamentos públicos e de qualidade dos serviços públicos na cidade.
Como esse adensamento repercutiu na qualidade de vida do DF?
Esse adensamento foi provocado pela ocupação ilegal do território, com grilagem de terra. A usurpação da terra pública teve um efeito devastador na qualidade de vida em Brasília. A grilagem aconteceu tanto para os ricos quanto para os pobres. Não houve só invasão em periferias, mas em áreas como os condomínios. Esse processo foi coordenado, não foi espontâneo. Tinha gente vendendo terra ilegalmente, que é muito cara no DF. Essas pessoas cercavam áreas públicas e vendiam. Não vamos romantizar a disputa de espaço na periferia. Ela aconteceu de maneira criminosa como se deu em áreas que foram ocupadas pelas elites. Esses atos foram prejudiciais para a cidade como um todo e benéfico apenas para os criminosos que fizeram grilagem de terra. Durante muito tempo, o Estado foi conivente com esses processos. Fez vista grossa. Hoje, a situação está consolidada e não têm mais reversão. Essas áreas afetam a sobrecarga que comprometem a oferta de serviços públicos. Na saúde, isso é um problema gritante. Na mobilidade, também é um problema enorme. Isso não foi culpa dos planejadores da cidade, mas de gestões posteriores que adotaram políticas que estimularam a oferta de habitação descontrolada e foram tolerantes com elementos de corrupção associados com os processos de especulação e grilagem que ocorreram ao longo da nossa trajetória. Temos que ter isso em mente para entender os desafios que a cidade tem hoje.
O senhor é um pesquisador acadêmico e durante algum tempo esteve à frente da Codeplan. O que mais o surpreendeu positivamente e negativamente sobre a cidade nesse período que foi gestor
O período que eu estive à frente da Codeplan coincidiu com a mais grave crise econômica do país. Os anos de 2015, 2016 e 2017 foram muito difíceis com aumento de desemprego, de perda de renda das famílias. Um período ruim para a população do DF e para toda a população brasileira. O lado ruim foi a magnitude da crise sobre as pessoas mais pobres, que sofreram perda de renda e, assim, aumentaram as desigualdades. No final quem paga a conta são os pobres. Isso não tem a ver só com Brasília, as crises econômicas transformam as pessoas que são pobres em pessoas miseráveis e sem condições de comer. Por outro lado, aprendi coisas interessantes e positivas sobre o Distrito Federal. Uma delas, que é o outro lado da moeda, é que por causa do alto poder aquisitivo há grau de prosperidade perene que atenua as crises. Consumimos em nível elevado. Alguns setores da economia local tiveram resultados positivos de crescimento durante aquela crise econômica. Por exemplo, o setor de saúde privada, que é importante dado o envelhecimento da população. As áreas de entretimento, lazer e cultura também são muito pujantes no DF. Tudo isso está relacionado à nossa capacidade de consumo. Isso nos dá alento no sentido de tentar ampliar a diversidade da nossa economia, o que é um desafio que precisa ser superado.
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